NOTA: No decorrer deste texto, encontra-se uma palavra desconhecida: maravedis. Era o nome dado à moeda internacional, ao dinheiro. Os maravedis, existiram durante séculos e foram a moeda padrão internacional, coexistindo com outras moedas de uso mais regional/nacional.
AVISO: QUALQUER SEMELHANÇA ENTRE OS EPISÓDIOS NARRADOS NOS PARÁGRAFOS SEGUINTES E A REALIDADE ACTUAL, É PURA COINCIDÊNCIA.
A cantiga abaixo é uma das mais engenhosas do cancioneiro escarninho. O fidalgo, Gil Pérez Conde, que servira o rei Afonso X na guerra, queixa-se das dificuldades em obter as soldadas correspondentes aos serviços prestados. Por outras palavras, acusa o rei de “mau pagador” — o que neste caso significa acusá-lo de mau cumpridor das obrigações geradas pelos vínculos de vassalidade.
Os vossos meus maravedis, senhor,
que eu non ôuvi, que servi melhor
ou tan ben come outr’a que os dan,
ei-os d’aver enquant’eu vivo for,
ou a mia mort’, ou quando mi os daran?
A vossa mia soldada, senhor Rei,
que eu servi e serv’e servirei,
com’outro quen quer a que dan ben,
ei-a d’aver enquant’ a viver ei,
ou a mia mort’, ou que mi faran en?
Os vossos meus dinheiros, senhor, non
pud’eu aver, pero servidos son,
Come outros, que os an de servir,
ei-os d’aver mentr’eu viver, ou ponmi-
os a mia mort’ o a que os vou pedir?
Ca passou temp’ e trastempados son,
ouve an’e dia e quero-m’ en partir.
(Gil Pérez Conde, Trovador Medieval, século XIII)
Os artifícios poéticos encontrados pelo nobre são engenhosos e bem humorados. Joga com o duplo uso de pronomes possessivos, “vossos” e “meus”, referindo-se aos maravedis que estavam de posse do rei, mas que por direito deveriam ser seus. “Os vossos meus maravedis”, “A vossa mia soldada”, “Os vossos meus dinheiros” — o trovador pergunta se os receberá durante a vida ou somente à hora da morte.
O “duplo possessivo” aqui empregado, com originalidade absoluta, é um exemplo notável daquela capacidade de trazer o confronto para dentro de uma única expressão.
A expressão “senhor” repetida em cada uma das três estrofes (por exemplo, “senhor rei”) assume um sentido a mais além do vocativo respeitoso. Competem, nesta forma, o modelo do “bom vassalo” e o contramodelo do “mau suserano”.
Numa outra cantiga chega a pedir “um bom fiador”, um judeu, mas um judeu que aceite ir à guerra, para que possa ir à próxima cavalgada.
Sospeita-m’el e el eu;
mais entregue-m’ un judeu
por mia soldada
e, se el for, irei eu
na cavalgada
E, se non, ficar-m’ ei eu
na mia pousada”
(Gil Pérez Conde, estrofes finais)
Exigir um “fiador”, num universo de valores vassálicos fundamentado na honra e na fidelidade, concede à cantiga não apenas uma solução bem humorada como também uma crítica mordaz ao monarca centralizador, que invoca a fidelidade vassálica apenas quando lhe interessa.
AVISO: QUALQUER SEMELHANÇA ENTRE OS EPISÓDIOS ACIMA NARRADOS E A REALIDADE ACTUAL, É PURA COINCIDÊNCIA.
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